domingo, 17 de fevereiro de 2008

Gorz e a cerimônia do adeus à mulher

É uma história de amor, mas também sobre a tragédia de não saber explicar filosoficamente o amor, o que, no caso do filósofo e jornalista austríaco André Gorz (1923-2007), representou ao mesmo tempo um desafio e um ajuste de contas com seu passado, antes de se decidir pelo suicídio duplo com sua mulher Dorine, em setembro do ano passado. Numa longa carta dirigida a ela e publicada um ano antes, Carta a D (tradução de Celso Azzan Jr., Annablume/Cosac Naify, 80 páginas, R$ 29), Gorz conta como conheceu e se apaixonou por Dorine, reconhecendo que nem mesmo em seus escritos mais contundentes conseguiu mostrar que o amor por sua mulher foi a razão de sua conversão existencial - em especial Le Traitre, alvo de uma autocrítica impiedosa.
Gorz, para quem não viveu os anos 1960, foi um dos teóricos de maior expressão da Nova Esquerda. De formação marxista e amigo de Marcuse, foi incensado pelos estudantes do Maio de 1968 e, posteriormente, reavaliado pelos mesmos na época do lançamento de Adeus ao Proletariado (Forense Universitária, 1982), que obrigou intelectuais de esquerda a uma revisão das formas de organização comunista. Entre outros pontos levantados por Gorz, o de maior relevância foi sua denúncia de que o marxismo criara o culto da "luta redentora" do proletariado. Desanimado com a instrumentalização de Marx, o filósofo transformou-se num dos maiores líderes da ecologia política, propondo então, uma revolução cultural para acabar também com os excessos do capitalismo. Para começar, foi pioneiro na defesa de uma renda básica para os cidadãos independente do trabalho, influenciando tremendamente políticos como o senador Eduardo Suplicy.
Carta a D não fala de politica. Ou melhor, fala, mas pouco. Gorz toca no tema justamente ao justificar a decisão do casal de se mudar para o campo quando a mulher Dorine foi acometida de uma aracnoidite que a impedia até de se deitar. Instalado numa casa do século XIX no vilarejo de Vosnon, na região de Troyes, o filósofo revê seu passado e tenta encontrar uma resposta para a mais inquietante de todas as perguntas: por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa e excluímos as demais? Nem seu amigo Sartre conseguiu dar uma resposta minimamente aceitável em O Ser e o Nada. Não seria ele que viria a ser o autor dessa definição, ao recapitular sua relação amorosa com Dorine, que, na época de Carta a D., estava prestes para completar 82 anos. Eles viveram juntos 58 anos. A perspectiva de perder o obejtvo de sua adoração carregou seu peito de um "vazio devorador";
Gorz concluía, no silêncio do campo, que amor, política e literatura ocupam um mesmo lugar. Formam uma espécie de aleph existencial, um ponto no centro do coração do homem. Sua história intima com Dorine mostra que, nos momentos mais difíceis - o desemprego, a hostilidade política de seus detratores, o rompimento de antigas amizades-, foi a presença da mulher que deu forças à sua militância. Gorz diz com todas as letras que Dorine era o "rochedo" sobre o qual essa união estava construída. Condenada por uma doença incurável, não restava muito a ele além de seguir seus passos em direção à morte. E, também por isso, essa carta é uma resposta a Le Traitre, em que seu juramento de amor é apenas formal, literário. Aqui ele é pra valer.
Fonte: O Estado de São Paulo, pg. D10/Cultura. Escrito pelo jornalista e crítico cultural Antonio gonçalves Filho, que vale uma leitura dominical do Estadão.

2 comentários:

Anônimo disse...

O amor é raro e quando vejo que existem belas histórias como essa, me sinto leve e emocionada! O amor é pra poucos, e que tamanha beleza ele tem! Nos momentos mais trágicos e mais felizes,e o que era triste ficou belo, pois morreram juntos.
Gorz tinha razão! Quando temos alguém que nos dá sustentação e forças, tudo fica melhor de se fazer! A vida se colore, os problemas passam a ter solução, por mais difícil que seja. A esperança surge perante o mundo e o desejo de ver amor em todos os cantos é extremo! E acompanhá-la em sua morte foi a coisa mais bela que ele fez. O egoísmo some diante do amor, e isso é tão lindo!
Adorei seu blog,professor!
Um beijo!

Bárbara Lia disse...

Rubens, deixei um comentário no blog do Favre. Grata pelas palavras sobre minha poesia... eu tenho um blog lá tem informações sobre meus livros ainda não esgotados... eu adoro o fausto wolff, admiro e quando ele faleceu escrevi um texto no meu blog e foi publicado no site dele:

http://www.olobo.net/index.php?pg=colunistas&id=1024

um grande abraço e muita poesia para ti em 2.009
Bárbara Lia